19h45
– Ó mãe, é tão giro! É um projeto. Começou na sala de aula. Uma das professoras colocou-nos um desafio: fazermos algo impensável, dentro dos limites da lei, claro, não fosse algum louco desatar a bater em alguém. Do que é que eu me lembrei? Da coisa mais absurda do mundo? Fazer de conta que era uma Neandertal, quer dizer, não utilizar equipamentos eletrónicos, nem Net, nem chats… Fazer de conta que sou de outra era! Não é o máximo? A ideia é tão original que recebi logo os parabéns da professora e até dos meus colegas. Ninguém acredita que eu consiga ficar uma semana nisto, por isso desliguei logo o telemóvel, ainda na sala de aula, e entreguei-o à professora. Se visses a cara deles! Olhavam para mim como se fosse louca. Fora os que desataram a rir. Ninguém acredita que eu consiga. Mas vou provar-lhes que sou capaz, mãe. Que há vida offline.
19h30
– O meu marido já está na faculdade e diz-me por chat que o informaram que a aula decorreu normalmente e que às 19h já o anfiteatro estava livre para a cadeira seguinte. Mas já não encontrou colegas de turma. Vai agora para a estação de metro, mas é um interface com milhares de pessoas a esta hora, não deverá servir de nada…
– Quanto tempo costuma a sua filha demorar a chegar a casa, por norma?
– Cerca de 45 a 50 minutos, mas claro que vai postando, vai enviando mensagens, pergunta pela ementa para o jantar, comenta passageiros do metro, tira fotos… Vai-se mantendo online, não sabe estar de outra forma. Quando falta apenas uma paragem costuma ligar e, aí, mantemo-nos ao telefone até que coloca a chave na porta.
– Percebo… Além das buscas no ciberespaço, possíveis comunicações privadas… Neste momento, já estão agentes a ir para o terreno, pois já entrámos no limite de tempo exigido por lei…
– Ah, que bom. Que alívio! Desculpe, estou a ouvir a porta. Quem será? Marisa, Marisa és tu!!!! Oh, meu Deus onde te meteste? O que te aconteceu? Estás bem?
– Agente Sílvia, a Marisa Cristina acaba de chegar a casa. Desculpe. Diz que está bem que nada se passou.
– Ótimo. Ótimo. Pode apenas confirmar se ela lhe parece normal, se não está a esconder ou encobrir algo?
– Normalíssima, agente Sílvia. Está a explicar-me que…
A agente Sílvia ouvia em duplicado. Primeiro a voz aguda da miúda e, depois, o eco da mãe repetindo-lhe tudo.
19h20
– No horário da sua filha, ela tem uma cadeira de Filologia neste horário, não será a sala de aula algum anfiteatro com pouca rede? Não terão ficado na aula até mais tarde?
– Nada disso. A Faculdade é nova e moderníssima e disponibiliza wifi em todos os edifícios e a aula dela não é a última do dia, pelo que a turma seguinte entra na sala às 19 em ponto e eles acabam a aula alguns minutos antes disso ou, quando muito, em cima da hora.
– Certo. Reconhece a casa em que a Marisa está na última entrada do Instagram? A legenda não é clara quanto ao local.
– Tem razão, mas, reconheço, sim, é a cafetaria do CCB. Costuma lá lanchar e até me enviou um SMS enquanto lá estava, a dizer que, afinal, hoje já não tinha chegado a tempo dos scones.
Voltou a ceder ao choro.
– Certo. Acalme-se, pois estamos a fazer progressos. Tentemos refazer o maior número dos passos da Marisa. Antes dessa mensagem, quando falou com ela?
– Pelo telefone, penas à hora de almoço. Depois disso, só através do Facebook e por chat e messenger.
– Pareceu-lhe feliz? Falou em planos para hoje? Tinha algum encontro? Namora? Apanha boleia de alguém, desloca -se em transportes públicos? Conte-me a rotina habitual das quintas-feiras da Marisa?
– Estava muito bem-disposta e as quintas-feiras são dias sempre muito preenchidos na faculdade, com dois blocos de aulas muito compactos, mas que se fixam nos extremos do horário: das 8h30 às 13h e depois, apenas das 17h às 19h.
19h15
– Mantenha-se em linha, por favor. Tem alguma linha fixa por perto?
Não percebeu. Linha fixa?
– Como assim, um telefone com fio?
– Isso. Tem algum por perto?
– Não –, respondeu desesperada, quase em tom de gozo. Ainda existem? Questionou-se em silêncio? Mas quem é que tem telefones com fios a não ser repartições públicas, quer dizer!??
– Tem consigo o carregador do seu telemóvel, e um local onde ligá-lo?
Esta, sim, entendeu à primeira.
– Sim, sim. Tenho.
– Ligue-o, por favor, para evitar que a linha caia por falta de bateria.
– Ah, ok, ok. Já está.
– Ótimo. Diga-me, então. Como se chama a sua filha?
– Marisa Cristina. Cristina é apelido.
– Certo. Que idade tem?
– 19 anos. É ainda uma criança.
– Porque tem tanta certeza de que está desaparecida?
– Porque está offline.
– Tem a certeza? Não será problema dos seus dispositivos?
– Não. Já verifiquei no telemóvel, no tablet e no computador. Não há posts recentes. Silêncio absoluto. Facebook, Twitter, Instagram, Pinterest, Snapchat… Os amigos e mesmo colegas de faculdade que têm o meu contacto já me ligaram para saber dela… Isto não é normal, veja se percebe o meu desespero. Não está a perder tempo comigo e todas estas questões? Não estamos a perder tempo precioso? Ela deve estar em sério perigo. Isto nunca aconteceu. Vão à procura dela…
– Tenha calma. Para irmos à procura da sua filha temos de saber onde procurar. Não poderá ter postado em grupos privados aos quais não tem acesso?
– A Marisa não me esconde coisa alguma. Faço parte de todos os seus grupos públicos ou privados…
– Essa é uma afirmação muito arriscada. Pode fazê-lo sem que o saiba, por isso mesmo são grupos privados, de acesso restrito…
– Desconheço o que me diz e não posso acreditar que tal seja possível. É uma miúda doce e inteligente, jamais se colocaria em risco ou teria algo a esconder. Tem milhares de amigos online e até de seguidores, ela aceita todos os convites, toda a gente. Esse, sim, parece-me ser o maior perigo. Alguém tê-la seguido e… Nem quero pensar no que lhe pode ter acontecido.
– Tenha calma. Estou neste momento a ver o perfil da sua filha nas redes sociais, tenho acesso a todas as entradas dela e os meus colegas já estão a cruzar dados e a estudar os cenários das últimas fotos postadas pela Cristina.
– Cristina é apelido, ninguém lhe chama apenas Cristina, todos a tratam por Marisa Cristina ou Mari Cris.
– Certo, desculpe. Mantenha-se em linha, não desligue.
19h14
Assim que o mostrador do relógio passasse dos 14 minutos depois das 19 horas para os 15 minutos ligaria, marcaria o 112. Aliás, já tinha o telemóvel na mão e o número marcado. Aguardava apenas o número 15 no mostrador digital do relógio de parede para carregar no verde e, assim, dar início à chamada. Não esperaria mais. Tinha dado a si mesma esse limite de tempo antes de deixar que o pânico se instalasse de vez. Na sua mente. No seu tempo. Na sua vida. A filha estava desaparecida. O número 15 não lhe daria mais certezas quanto a isso. Não tornaria mais real essa fatalidade que sentia no peito, a dor que já lhe martelava o cérebro, de forma insistente e ritmada. Os remorsos por não ter dado mais umas centenas de euros – que na altura lhe pareceram obscenos – por um telemóvel com mais autonomia. Talvez isso tivesse bastado para poder socorrê-la a tempo. Conseguir localizá-la, pelo menos. O 15 não era sequer uma superstição idiota, pois em horas de sinal vermelho não há espaço para manias. Apenas não queria que, do lado de lá da chamada, a voz anónima que a ela se dirigisse menosprezasse o seu desespero. A sua dor. Queria ser levada a sério desde o primeiro segundo.
– A minha filha está desaparecida. Por favor, ajudem-me a encontrá-la.
Assim que proferiu estas palavras, logo que ouviu a sua própria voz deitar cá para fora aquilo que era ainda e tão-somente um segredo, escuro e pesado na sua mente, desatou a chorar. Um choro compulsivo que não lhe competia a ela controlar. Era-lhe externo. Alheio. Tinha vida própria e foi preciso um esforço enorme para se concentrar e ouvir, por cima do choro, aquilo que lhe perguntavam do outro lado da linha, que já não era linha, era onda e era fibra e era satélite.
– A minha filha está desaparecida desde as 19h. Nem o menor sinal de vida online. Marisa Cristina nunca esteve offline em toda a vida e não atende o telefone.
Sem ouvir ou compreender plenamente o que lhe diziam, a mãe insistia:
– Conheço a minha filha. Ela jamais ficaria offline. Por favor, encontrem a minha filha. Já passou uma eternidade desde o último post. Ela não comunica desde as 19 horas não percebe?
– Há, portanto, 24 horas, certo? Ela não comunica desde as 19 horas de ontem, é isso que me está a dizer?
– De ontem? Mas que mãe julga que eu sou? Eu esperaria lá um dia inteiro, 24 horas seguidas, sem saber da minha filha adolescente? Ela está desaparecida desde as 19h de hoje, agente Sílvia. De hoje. Há precisamente 15 minutos quase 16, neste momento.
Com prudência, mas de forma assertiva, para não ferir suscetibilidades, mas para marcar posição, a Judiciária insistia, por seu turno e com notória redução de stress na voz, que apenas 30 minutos de mudez cibernética permitiriam dar início às buscas. A mãe desesperava, com a falta de argumentos legais válidos que abreviassem o início das buscas. A sua filha estava desaparecida. Desaparecida das redes sociais, do telemóvel, do GPS… Desaparecida da vida. Há já 15 minutos.
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