Nos anos ’80, rendeu-se ao cubo mágico, um quebra-cabeças que jamais solucionou além de uma das faces do estúpido cubo, que de mágico tinha muito pouco e de bruxaria tinha tudo. Aquilo era coisa do Demo. Como a sua avó sempre disse: “O Diabo esconde-se nas pequenas coisas.” Pois ele ali estava, pintado de pequenos quadrados coloridos, para lhe infernizar a vida e mostrar quão limitado era o seu QI, se é que a inteligência na sua globalidade e não apenas a lógica matemática ali se determinavam, naquele sólido geométrico. Na escola faziam-se concursos medonhos e maçadores para ver quem acabava em primeiro lugar por dar uma única cor a cada lado do demoníaco cubo. Olhar o frenesim histérico de dedos enlouquecidos rodando o cubo nas mãos fazia-a entrar numa desconcertante espiral, em tudo igual à que sentia quando bebia álcool. Com uma vantagem a pender a favor do álcool: não se sentia burra ao beber. Na verdade, se concursos houvesse para determinar quem bebia mais, ou mais depressa, ou com mais prazer, ela ficaria, seguramente, num dos dois primeiros lugares, senão mesmo com os dois, se isso fosse possível. Também não devia ser assim tão burra, já que, ainda não tinha substituído os enchumaços dos ombros, nem os folhos que lhe atulhavam o guarda-roupa, pelo minimalismo reto dos anos ’90, quando suscitou o maior ‘I love you’ num dos seus professores do secundário. Dava aulas de Antropologia e ele próprio deveria ter, assim por alto, mais 400 anos do que ela, mas essa bizarria era aquilo que mais a estimulava. Dava ordens a um homem mais velho do que seu próprio pai, aquilo, sim, era poder. Num paralelo televisivo, aquilo foi passar diretamente de ‘Uma Casa na Pradaria’ para o ‘Beverly Hills 9021’, ou, voltando ao álcool, era como passar diretamente de capilé para absinto puro. Nem sequer tinha namorado convenientemente um colega de turma e já tinha um prof na sua caderneta de conquistas. Aborreceu-se do coitado quando percebeu que ele a filmava em poses comprometedoras ainda em Betacam quando já só se falava em VHS. Era outra geração. Tinha de o deixar ir. Mais velho era uma coisa, mas velho, de verdade e em termos absolutos, era outra completamente distinta.

Vomitava imenso por essa altura e receou o pior, estar grávida daquele dinossauro, mas pulou de felicidade quando lhe falaram em anorexia. Anorexia, se bem recorda as palavras da médica, é um estado nervoso, supermoderno na época, que faz com que os indivíduos vomitem aquilo que comem, ou seja, é uma espécie de dieta inconsciente. Tanto melhor. Não apenas não estava grávida como estava a emagrecer, sem sequer deixar de comer, o que era muito atual naquele início de década. Tão seleto que até a princesa dos ingleses sofria do mesmo. Estava muito à frente do seu tempo. Uma sofreguidão por tudo aquilo que era novo e se adivinhava vir a ser moda, passou, então, a ser a sua mais expressiva mania. Da anorexia passou à bulimia e desta para os telemóveis, já que qualquer obsessão era bem-vinda. Não havia novo modelo que não experimentasse, acabando por cair numa pequena depressão nervosa e financeira, quando os novos lançamentos começaram a acontecer numa base quase diária. Ingressou num grupo de ajuda, do qual foi convidada a sair, ou, na versão oficial, foi reencaminhada para um outro grupo bem mais versado no seu principal problema à época: o álcool. Ao perceber quem eram as pessoas desse seu novo grupo de acompanhamento, entendeu que estava completamente démodé, que o álcool era a droga do passado. Nessa década, quem não snifasse da branca – cocaína, para os que estão mais fora do assunto e da simbologia cromática dos estupefacientes –, não era gente. Era chique, era elitista, era cara e, como bem decidiu e em boa hora, era a sua cara. A quantidade de gente gira, divertida e importante que conheceu à conta de tanto risco, é indescritível. Ainda hoje, de entre os que sobreviveram, conta bons amigos dessa época. Doida por um bom vício, e com os vinte anos a esgotarem-se, percebeu que tinha de optar: ou continuava agarrada à droga ou investia em si. Estava na hora de dar importância ao que realmente importava, de se valorizar, de olhar para si de dentro para fora ou vice-versa, que a ordem dos fatores nem sempre era elucidativa. Deixar-se de brincadeiras da moda e tornar-se responsável.

Assim fez. De um dia para o outro, desalojou o seu dealer, com quem vivia há já algum tempo, mais por uma questão de comodidade do que por amor, assim, sempre que precisava de mais um risco (ou vinte) ou algo mais, não precisava de sair à rua, de pijama ou sabe-se lá em que outras figuras, bastava virar-se para o lado e pedir. Era tão mais cómodo! O pobre lá saiu e ela enfrentou de peito aberto as exigências do momento. Chamava-se botox e era tudo aquilo de que uma jovem mulher moderna precisava. Aquilo era ter nas mãos uma permanente bomba de ar, para ir enchendo cada espaço vazio ou amolgadela que o tempo teimasse em tornar visível, ou apenas porque sim. Com o tanto que ainda vomitava – ele há hábitos que morrem com a pessoa –, ficou fã acérrima das seringas e seus milagrosos venenos. Eles paralisavam músculos, eles redesenhavam bocas… Já para não falar do que se seguiu, o absolutamente milagroso e divinal silicone. Ele avolumava peito e nádegas, ele remodelava cada curva do corpo. Pouca coisa houve que não tivesse feito. Sentia-se uma nova mulher. Tão nova e diferente que raramente se reconhecia. O que era bom, numa era de volatilidade e de novos começos em que parar era estagnar. On the move era o tão atual lema da sua vida por esses dias. E assim se manteve, até um novíssimo e calamitoso universo a colar ainda mais ao ecrã do telemóvel, já promovido a smart. Eram as chamadas redes sociais, senhores, e aquilo é que era viver de empréstimo. Tudo aquilo que um dia se sonhou passava a ser realidade. Só para si, e muito por alto, inventou umas 50 vidas de sonho, tipos fantásticos a abanarem-na com folhas soberbas de bananeira em locais tão exóticos que nem existiam ainda.

Foi amada mais do que muito, tinha casas brutais atrás de casas não tão brutais, viajava loucuras sem jamais entrar num aeroporto… Era a mais bem sucedida realizadora de universos paralelos. Tornou-se influencer, quando ainda nem se sabia bem o que isso era de facto. Por também ela não ter uma ideia clara, acabou ultrapassada por visões mais reais da realidade, mas então já ela estava a embarcar no slow movement, o que também foi sol de pouca dura, porque demasiada lentidão não se adequava ao seu ritmo inquieto. Ainda tentou mudar todo o movimento, mas parece que isso ia contra a natureza da coisa e acabou mais ou menos expulsa, até porque nunca foi de plantar a sua própria comida – cruzes credo!, menos ainda semear (uma trabalheira!) – e beber sem palhinhas de plástico estava interdito à sua boca, mil vezes remodelada e que já tinha pouca amplitude de movimentos para beber normalmente por copos, sem que se babasse forte e feio, sem que disso desse conta, tal era o adormecimento muscular. Não estava para ser criticada. Já lhe bastava o ódio que desencadeava no Facebook, com qualquer um dos seus esquizofrénicos perfis, todos eles inventados ao milímetro da perfeição. Tanto esforço para um dia perceber que o planeta se tinha acabado de mudar para o Instagram e, avisavam-na já as vozes do futuro, ela que investisse no Pinterest. Já mal tinha tempo para trabalhar, sendo que também não guardava memória do que fazia e onde é que tal acontecia. Uma breve consulta à sua conta bancária, dizia-lhe que, afinal, não se preocupasse, há muito que não recebia um tostão, pelo que também já não devia ter patrão a quem prestar contas, o que era bom, pois nunca tinha sido boa em cálculo. Sentiu um breve alívio, pois não gostava de dececionar terceiros. Principalmente terceiros que são sempre gente muito ressabiada pois nem em segundo chegaram, e por muito que falem, todos ambicionam o primeiro lugar. Ela não prescindia dele por nada do mundo, razão pela qual aguardava, nesse preciso instante, numa sala de recobro, que alguém chegasse para lhe dizer como tinha corrido a sua operação de mudança de sexo.

Sim, mudar de sexo ou inventar novos sexos e diferentes sexualidades era o que aí vinha. Já estava na Holanda e em breve chegaria a Portugal e ela, como sempre, pioneira de entre os pioneiros, seria de novo o role model de todo um país provinciano. Na gaveta tinha algo ainda mais bombástico, ser o primeiro ser vivo do planeta a ser mãe e pai do seu próprio filho. A ciência e as éticas para a vida e tudo o mais ainda não a acompanhavam, mas em breve se renderiam ao facto puro e simples de que isso era o futuro. Ela era apenas a mensageira do que estava por vir, do que já batia à porta da humanidade. Do que já se percebia no ar. Mesmo sem mudanças de sexo, pelo mundo fora, países havia em que cada um decidia a que género pertencia e os WC do futuro apenas anunciariam genericamente na porta Gente ou Pessoas ou Indivíduos.

Enquanto magicava em tudo isto, dava igualmente largas ao seu pensamento pragmático. Mudaria todo o seu guarda-roupa para uma versão masculina? Manter-se-ia adepta de vestidos? Inventaria algo hermafrodita, assim no in between? Bem mais irritada, pensou em algo que não lhe tinha ocorrido antes: teria de amar mulheres ou poderia manter-se fiel ao sexo masculino, o seu predileto? Habituar-se-ia e mictar de pé? E porque já dizia mictar ao invés do clássico fazer chichi? Já se sentiria parcelarmente homem? Tantas coisas em que pensar, agora que entrava neste novo universo da sua vida. Enquanto isso, apalpava-se para tentar perceber… Devia estar baralhada com tantas drogas. Ainda era mulher. E se, em vez de mudar de sexo, apenas fosse comer uma sapateira e pensar melhor sobre o assunto? É que havia roupa da qual jamais se conseguiria separar. Não seria já, tal como era, um ser perfeitamente perfeito? Haveria mais caminhos a desbravar? Por outro lado, já tinha vários perfis masculinos, cada um melhor do que outro, criados em diferentes plataformas, que aguardavam o seu (re)nascimento. A vida era muito complexa. Pior de tudo, questionava-se sobre há quanto tempo estaria para ali deitada, sem nada fazer a não ser engordar à conta de tanto soro. Tinha mesmo de vomitar. Lembrou-se de pedir ajuda:

– Socorro!

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