Parada no trânsito. Nem para, nem arranca. Apenas parada. Uma fila a perder de vista e o rádio a anunciar um brutal choque em cadeia, devido à má visibilidade. O denso nevoeiro impedia-a de avaliar a real dimensão de tudo aquilo, mas a total imobilidade, há já mais de uma hora, e o trânsito de condutores em deambulação pedonal, como sombras fantasmas, pela autoestrada, sublinhavam e confirmavam a gravidade de tudo aquilo que não lhe era permitido ver. A manhã soava a noite cerrada. Maldizia a hora em que decidira tomar aquele caminho, um dos possíveis para chegar ao escritório do marido, onde se sentiu compelida a ir, antes de seguir a rota normal para a redação, depois de ter percebido que o marido se tinha esquecido do telemóvel em casa.

Um gesto de simpatia que lhe custaria horas de atraso, logo nesse dia, em que tinha uma importante entrevista, que deveria entrar ainda no jornal da tarde. Mais do que um gesto de simpatia, uma urgência, pois sabia bem quão dependentes estamos, hoje, destes pequenos e não tão pequenos, retângulos de tecnologia. Contactos, agenda, lembretes, e-mails, acesso à internet e a toda uma vida arquivada na cloud… Tudo! Pior do que sair de casa sem roupa, é sair de casa sem o telefone, muito justamente adjetivado de smart. Hipotecámos toda a nossa memória aos smartphones. Confiamos-lhes todos os nossos segredos, mensagens de amor e de ódio, todos os nossos contactos e passwords, os quais já nem tentamos memorizar, tal a confiança que depositamos no aparelho.

Ficar sem rede ou sem bateria é como ficar isolado numa ilha deserta sem very-lights, sem forma de sinalizar a nossa presença e localização. Conhecia bem a desoladora sensação. Sem telefone, é como se estivéssemos desprotegidos, sem defesas, à mercê de todo o tipo de ataques e vilanias, expostos a qualquer tipo de bactéria letal e votados ao ostracismo. O smartphone é a versão contemporânea do canivete suíço, com as suas inúmeras e ilimitadas extensões, adereços e utensílios. Chamamos-lhes apps, mas não são mais do que diversos tipos de lâminas, e ferramentas indispensáveis, das quais sacamos na imensidão das neuróticas florestas que hoje habitamos, e nas quais nos tentamos orientar. Imaginava o stress do marido. Talvez até já tivesse regressado a casa, para o resgatar, uma vez que tentou ligar para o escritório e ele ainda não tinha chegado. Como teria agido há apenas dez anos? Quando a dependência de todos os dispositivos eletrónicos móveis não era tão psicótica? Provavelmente, teria feito o mesmo, ou apenas se limitaria a ignorar o telefone do marido, crente de que ele, achando-o em falta, voltaria, ou não, a casa conforme entendesse que poderia, ou não, passar sem ele?

Na consola do carro, ao lado do seu, o telefone do marido, bem mais ativo e histérico do que o seu, não parava de vibrar, anunciando chamadas, a entrada de novos e-mails e mensagens e outras tantas notificações das redes sociais… A sua presença não passa despercebida. São a banda sonora das nossas vidas, aquele ruído de fundo… Um toque diferente anunciava a entrada de uma chamada via Skype. Seria a tal videoconferência de que o marido lhe havia falado? Sentiu-se tentada a responder. Sempre poderia justificar a ausência do marido, esclarecer o seu incumprimento, desculpar uma qualquer falta grave, retirando-lhe isso mesmo, gravidade, para a tornar numa banalidade doméstica a não requerer penalização. A cara de uma loura-arruivada espampanante, retirou-lhe preocupações e zelos profissionais, e arrasou com a sua já meio desmoronada frescura matinal. Estudou-lhe o rosto mais de perto. Tão de perto que precisou de colocar os óculos de ver ao perto. Sim, já precisava de uns desses. Era nova, a estúpida. Nova e gira. O estupor. Pior. Tinha aquele qualquer coisa de perigoso. Sex appeal e trejeitos de cama. Tudo aquilo que uma mulher odeia noutra.

Principalmente numa que surge, logo às nove da manhã, no ecrã do telefone do marido, com aquele tom de ruivo&traição no cabelo e um sorriso todo dengoso. Nada profissional, pensou, para foto de perfil. Nem sequer o nome. Pat Garcia. Pat, de Patrícia, seguramente, e isso seria a coisa mais certa em tudo aquilo. Tão pouco profissional, voltou a pensar. E se não for profissional? E se for uma colega atrevida ou uma amiga que ela não conheça? Do ginásio, do restaurante onde costume ir, do bar onde por vezes para com colegas e clientes, uma cliente…

Sem se dar conta, o ritmo do seu coração começou a ecoar-lhe na cabeça, onde imagens estapafúrdias do marido com aquela outra rodavam em loop e tudo parecia suspenso no interior do carro, como se o nevoeiro lá de fora invadisse os seus pensamentos, nublando tudo, esbatendo contornos. Nunca, mas nunca mesmo, tinha sentido curiosidade em bisbilhotar o telemóvel do marido, nem se preocupava em saber códigos e passwords de desbloqueio… Já lhe bastavam as suas milhentas. As coisas dele eram dele. As suas eram exclusivamente suas. Entrar por essa viela era desembocar num caminho sem retorno, de vigílias, vigilâncias e desconfianças que jamais quereria para si.

Além de que coisas inofensivas e mais ou menos ingénuas, mas absolutamente inconsequentes que podem animar um qualquer dia, podem sempre ser lidas, sob a lente do ciúme e da suspeita, como algo mais, capaz de precipitações trágicas e dilemas irresolúveis. Cada um tem direito a um pedaço de espaço livre, isento, um lugar onde passear o Eu sozinho. Os casais não são ‘um só’. Isso é um desproporcional disparate. Uma enorme imbecilidade. Um casal é o somatório de duas pessoas, mas por justaposição e não por aglutinação. Quando muito por simbiose. É uma sociedade amorosa e sexual, onde devem convergir todos os interesses de ambos os associados, mas sem asfixias.

A ruiva tinha desaparecido do ecrã. Desistiu. Não. Antes tivesse. Voltou à carga. Quem, a não ser a própria mulher, insiste numa chamada? Se alguém não atende uma chamada é porque não pode ou não quer. No primeiro caso, voltará a ligar logo que lhe seja possível. No segundo, não. Ambos os resultados são informativos para quem liga. Aquela insistência denunciava familiaridade ou apenas estupidez? Agressividade ou mera falta de competências sociais? Já estava a ficar irritada com aquilo. Só reconhecia a si própria a autoridade, o privilégio de ligar insistentemente para o marido, quantas vezes de seguida lhe apetecesse, sempre num crescendo de irritabilidade, sempre que ele não atendia – fosse por que razão fosse – e sempre que ela assim o entendesse. Para isso nos casamos. Para podermos insistir e arreliar e desabafar e estar tão à-vontade que não nos sentimos compelidos a cumprir normas de etiqueta com a pessoa que amamos e elegemos para parceiro de vida. Mas, afinal, quem era aquela lambisgoia de farta cabeleira ruiva, que se achava com os mesmos direitos? Seria ‘a outra’? Havia uma ‘outra’? Como é que nunca tinha dado por isso? E a porcaria daquele nevoeiro e de toda aquela cáfila à sua frente que não atava nem desatava. Que bom seria ser rica. Mandaria vir o helicóptero.

 

– Mas, repare, com este nevoeiro não podemos levantar voo – dir-lhe-iam, desprevenidos, os coitados, porque a ordem seguinte seria mesmo:

– Quero-os aqui em cinco minutos. Ah, e com uma escada de corda, para que eu possa subir a bordo. Roger and out.

Mas não era rica. Não tinha um helicóptero e nem sequer falava assim com as pessoas, com essa arrogância e falta de sensibilidade e de modos, ainda que muitas vezes lhe apetecesse. Com aquela galdéria falaria ainda de forma pior, estava certa. E com o marido, logo que o visse, bem…!!! Com ele seria bem pior, pois a responsabilidade, o dever, a obrigação estão do seu lado e não do lado da outra, provavelmente solteira e desimpedida para fazer todo o tipo de asneiras que lhe aprouver. A culpa, a haver, seria toda dele. Não podia ser emocional. Precisava de racionalizar, usar de lógica, se conseguisse, antes de sacar do seu arsenal bélico. Tinha de organizar os pensamentos. Recuperar todo e qualquer episódio ou desconforto que pudesse denunciar uma amante. Enquanto isso, investigaria na net quem era aquela cabra ruiva. Pat Garcia. Uma ‘acompanhante’, seguramente. Seria melhor ou pior, se a outra fosse uma mulher de aluguer? Bolas! Não tinha rede. Por isso o seu telefone estava tão quedo e silencioso. Deve ser alérgico ao nevoeiro, ou à ruiva. Tentava divertir-se. Alhear-se. Mas não era esse o propósito. Esse era manter o foco e a lógica, a fim de saber o mais que pudesse sobre aquela parte da vida do marido da qual não fazia parte. O seu trabalho, os seus negócios, os seus clientes e colegas. Tudo aquilo em que ele ocupava as 12 horas que diariamente os separavam. Eram muitas horas, pensava! Metade da totalidade do tempo disponível. Toda uma segunda vida podia acontecer durante esse tempo, sem que dela suspeitasse. Sem o menor vislumbre, sequer, de haver tal possibilidade.

Procuraria no telefone do marido. Perguntaria ao senhor Google quem era, afinal, aquela monstrenga de cabelo pintado. Não sabe bem o que fez, nem se tal é possível de acontecer… Ao escrever o nome da grande vaca no motor de busca, inesperadamente, tal como acontece quando, no Outlook, se procura um e-mail pelo nome, no ecrã do telefone do marido, surgem todas as interações dele com o estafermo. Eram infinitas. Mensagens, likes, posts comentados, retweets, e-mails, messanger, whatsapp… Aquilo era tenebroso. Aquilo era extenso e avassalador. Aquilo era tão suspeito, que toda ela gelou ainda mais, já que, com o carro parado e o frio que se fazia sentir no exterior, enregelada já ela estava. Mas este frio era bem pior. Era interno. Era do tipo letal. Aquele que leva à hipotermia afetiva. Nem ela tinha tal historial virtual com o marido. O que era aquilo, afinal? O que se estava a passar? Terapeuta. Assim se apresentava a grande vaca. Sim, não mais mudaria de nome para lhe atribuir. Terapeuta sexual, deduziu mais à frente. Grandessíssima bovina. Andaria ela a ‘terapeutar’ o seu marido? Como se atrevia? É certo que a vida a dois nem sempre deixa o espaço necessário para uma vida sexual escandalosa, mas nunca tinha faltado sexo no seu casamento. Precisaria ele de mais ainda? Seria pela novidade? Seria ela acrobata de um circo asiático? Usaria brinquedos e palavras ordinárias?

O que era aquilo? Não conseguia compreender e quanto mais coisas via ou julgava ver e quanto mais sabia, ou achava que percebia, menos compreendia o que se passava. Andava a ser traída? Não conseguia assimilar. Começava a hiperventilar. Abriu a janela. A atmosfera era de tal forma húmida e densa que o cabelo do lado esquerdo, aquela parte que assomou à janela, não tardou a ficar molhado. Tudo em seu redor estava pegajoso. Cinzento. Opaco e estupidamente incompreensível. Doíam-lhe sítios no peito que nem sabia que existiam. Sítios pequeninos, onde uma dor aguda e aflitiva palpitava, como qualquer típica infeção. Bum-bum, bum-bum… Acabariam por rebentar. Todos esses minúsculos recantos no já moribundo recife do seu peito. Foram-se as cores, os peixes, o oxigénio. Precisou de abrir a janela de novo. O pior de tudo era a confusão. A incapacidade para resolver aquilo do peito e aquele outro tanto que se passava, a alta velocidade, no seu cérebro. Já sentia a formação de coágulos. Se não resolvessem a porcaria do acidente rapidamente, morreria de aneurisma ali mesmo, com o telefone do marido escancarado e a cara da bovina mestre no ecrã. O que mais a arreliava é que lhe apetecia escarafunchar ainda mais aquela ferida. Abrir mais janelas naquele ecrã. Vasculhar a sordidez…

Tinha entrado uma nova mensagem. Um vídeo? Enquanto a sua mente se debatia com éticas e outros disparates e jurava que jamais seria capaz de abrir uma mensagem dirigida ao marido no próprio telefone dele, os seus dedos já se tinham marimbado para tudo isso. Meus Deus! Sexting. A rainha do curral, a imperatriz da corte de gado enviava mensagens porcas ao marido. “Já vens?”, perguntava a ordinária, enquanto num curtíssimo vídeo, apenas o risco que separa as fartas mamas daquela vaca. Não era uma simples traição. Era todo o universo que festejava o carnaval na sua casa. Um samba vulgar e infernal. Quem era o marido? Que homem era aquele? Nunca imaginou que ele gostasse desse tipo de interação. Que deprimente e sórdido. Que baixo nível! Ele era um cavalheiro. Mr. Darcy em pessoa. Galante, educado, civilizado… Que badalhoquice era aquela? Aquela era uma versão sub-humana do homem que amava há mais de uma década. Um ser que desconhecia. Tamanha vulgaridade enojava-a. Teria ele procurado nos antípodas do género feminino, ou meramente humano, para ver aquilo que andava a perder? Quase parecia um estudo sociológico, ou sexológico. Aquele homem não era o seu marido. Receberia muito lixo daquele todos os dias? Na rádio, parecendo que gozavam com a sua tragédia, que riam do seu drama, que liam aquele mesmo enunciado depravado que lhe galgava pelas veias, anunciavam um novo tema dos Cigarettes After Sex. Só podiam estar a brincar. Já não conseguiu abrir mais fosse o que fosse. Olhar aquilo doía de uma forma cruel. Mundana. Sentia-se tão suja como se fosse ela a enviar aquelas mensagens. Como se tivesse sido ela a desnudar-se para uma troca apimentada e sexualmente sugestiva de mensagens com um homem que não era o seu. Ou também seria dela? Poderia haver também amor naquilo tudo? O grau de intimidade era desnorteante. Sentia-se isolada. Perdida. Era tão grande aquele tipo estranho de tristeza que tudo era novo.

A repulsa, a miserabilidade, a angústia e – agora de nada valia fugir à verdade – a dor de corno. Aquilo era a tão falada e sobejamente documentada – em todo o tipo de literatura, cinematografia e géneros musicais – dor de corno. Era assim que soava. Era assim que se sentia. A aflitiva sensação de andar a ser traída. Traída pelo homem que amava, que alternava o mais puro afeto que ela tinha para dar, com rotinas sórdidas com uma mulher que era o estereótipo da boazuda. A que nível do Inferno de Dante correspondia aquilo? Fogo. Já teria de haver fogo e serpentes bicéfalas, e enxofre e ácido sulfúrico, por favor.

Submarido. Aquele homem que imergia naquele pântano, que chafurdava naquela imundice não podia ser o seu marido. Era um submarido. Um género inferior de homem. O homem que amava não podia ser um traidor. Um traidor é o pior dos inimigos. É alguém que nunca nos respeitou. A traição exclui automaticamente o amor. Não se pode apregoar que se ama alguém que se anda a trair. Isso não existe. Quando se ama não se é capaz de trair. Até se pode deixar de amar. Informa-se o outro de tal acontecimento e, então, só então, se parte para outro episódio da vida. Não podem ser concomitantes, o amor por uma pessoa e a traição dessa mesma pessoa. Há uma impossibilidade matemática que o impede. Uma incompatibilidade de termos.

Uma coisa não faria: de conta que de nada sabia. O fim já tinha acontecido. Já nada havia para falar ou esclarecer. Não se podia permitir saber mais do que o muito que já sabia. Lá no fundo, já nem o amava tanto como quando, há apenas duas horas, tinha decidido empatar um pouco o seu dia, para lhe fazer um favor. E que grande favor que lhe estaria a fazer. Voluntariou-se para entregar a arma do crime ao criminoso, para que ele a pudesse ocultar e eleger a sua defesa. Tão crédula estava no amor que julgava terem, que aquele cenário não passaria nunca de uma má cena de telenovela. Pois o guião entrou-lhe em casa e ela era a protagonista. Tão foleiro! Além de tudo o mais, ainda era de mau gosto. De um género inferior. Não era algo alternativo. Artístico. Admissível. Não, era o estereótipo do estereótipo. Uma banal banalidade da vida mundana. Uma mamalhuda. Estudado cabelo ruivo. Calculado grau de sex appeal. Uma tristeza!

Tudo ruía à sua volta. Estava tão capaz de cometer uma loucura que a cometeu. Manobrou o carro de forma a ficar em sentido contrário na autoestrada, na única espécie de faixa disponível: a berma. Acelerou no meio daquele espesso e tenebroso nevoeiro, o que era igual a conduzir de olhos fechados ou simplesmente no escuro total. Nada via à sua frente. Apenas uma espessa massa de humidade cinza. Não percebeu. Não viu. Não se deu conta. Nem ouviu as sirenes, nem as luzes amarelas. Chocou de frente com um reboque que tentava, desesperado, chegar ao local do acidente, um pouco mais à frente. Ao seu lado, na consola central, junto ao seu telefone, o do marido recebia uma mensagem que já não leu:

“Dr. Nunes. Que vergonha. Estou tão embaraçada. Nem sei como me desculpar. A mensagem que lhe enviei há momentos, era destinada ao meu marido… Enganei-me no envio. Ele chama-se Nuno, o senhor é Nunes. Tinha-lhe acabado de ligar, por causa da nossa reunião, e quando enviei a mensagem, o telefone agarrou o seu número… Estou mortificada! Poderá perdoar? Que constrangedor.”

No hospital, o melhor amigo e sócio do marido, junta-se a este logo que sabe da trágica notícia. Enquanto aguardam informação clínica, mais para retirar o amigo do marasmo e sofrimento em que estava mergulhado, do que motivado por real preocupação, diz-lhe casualmente, tentando dar um tom de normalidade:

– Ontem, devo ter deixado o meu telemóvel em vossa casa.

– Nunes, não tentes distrair-me, por favor!

Partilhar