Tudo se passou, umas vezes mais outras vezes menos, como aqui o descrevemos, e resume-se, e agora, sim, isto é verdade, a muito pouco: Valter cuidava das canetas e do papel de impressão numa empresa que não utilizava nem umas nem outro, num grande armazém onde magicava elaboradas e inúteis ratoeiras, para apanhar extraterrestres. E pronto, esta é a versão curta da história, na qual já se diz tudo, mesmo tudo, o que há para saber sobre Valter. Mas elaboremos um pouco mais, para quem não captou todo o absurdo, ou apenas ficou com a pulga atrás do que for, precisamente por se sentir curioso perante todo o tipo de bizarria. Valter Gate, chefe do departamento de economato de uma grande empresa tecnológica era, no seu mais profundo íntimo, um homem tradicional. Mais do que isso, era um ferrenho conservador. Old school, para não dizer retrógrado ou ainda que todas estas estratégias retóricas, mais não cumprem do que a função de evitar o rótulo óbvio e bem mais apropriado: Valter era um boçal. Um bacoco. Não era conservador por inclinação ideológica, já que, a bem do rigor, nem conhecia a escola conservadora, menos ainda a liberal, apenas aquela com arquitetura do Estado Novo onde estudara o menos que conseguiu. Ali onde trabalhava, bem percebia que o mundo avança, mas não consigo a bordo. Não apreciava viagens e era raro o meio de transporte, terrestre, marítimo ou aéreo onde não vomitasse.

– Tem a ver com o ouvido interno. Uma maçada!

Era o que dizia, fazendo-se entendido em ciências médicas e deixando transparecer que, não fora isso, e lá iria ele, aventureiro como era, por esse mundo fora. Claro que não iria. Nem mundo fora nem mundo adentro, que parado era o seu lugar predileto. Claro que o seu ouvido interno nada mais tinha do que um tampão de cera, que impedia, acima de tudo, a chegada de informação ao cérebro, e que a maior aventura da sua vida foi ter, em tempos muito, muito idos, engolido uma pastilha Pirata. Perguntarão, pois, como tinha Valter conseguido trabalhar numa das grandes tecnológicas do momento, sempre em busca de gente cool, alternativa e inteligente? Pois bem, aqui fica a explicação. Valter tinha sido contrapartida para a compra do mega edifício centenário, na melhor zona da cidade. Isso mesmo. Era tão valioso para o antigo empregador que, logo que surgiu a primeira oportunidade – neste caso uma multimilionária venda de instalações –, a primeira preocupação foi perceber de que forma conseguiriam manter o belo negócio e, de uma assentada, ‘despachar’ Valter, o funcionário faz-tudo que nada fazia. Um empecilho que a todos tirava do sério, fosse pela estupidez, ou pela preguiça e que não havia maneira de despedir. Fosse por que razão fosse, nenhuma administração tinha conseguido ver-se livre de Valter. Por fim, ao cabo de quase 30 anos, sem perceber muito bem como nem porquê, já que tinha de si próprio a mais elevada das opiniões, lá foi ‘vendido com o edifício, e entrou numa das mais cobiçadas empresas do mundo. Aceitou como verídica a única explicação plausível ao seu raciocínio: era de tal forma valioso, que os compradores não apenas desejavam o prédio, como se recusavam a ficar com ele caso o melhor funcionário do antigo negócio não fizesse parte da transação.

O ego de Valter subiu uns quantos níveis, o que teve como resultado imediato que passasse a proferir todos os seus pensamentos e opiniões em voz alta. Alguém que tinha encetado tamanhos esforços para o contratar, era obviamente porque via mérito na sua pessoa. Como não era especialista em coisa alguma, então, aquilo que nele admiravam seria, seguramente, a sua originalidade de pensamento. Pois tê-la-iam. Toda. Mesmo que não solicitada. Acima de tudo quando não solicitada e principalmente sobre o tema em que melhor se movimentava: ovnis e extraterrestres, assunto em que se sentia um intrépido e arrojado especialista. Não se limitava à teoria, até porque era alérgico a páginas de livros – condição que em muito se relacionava com aquela outra do ouvido interno e tudo o mais. O seu saber era empírico e contava já com inúmeras aparições, três contactos diretos e uma comunicação concretizada, tudo bem documentado na sua mente, pois, lamentavelmente, também não podia entrar em contacto com a tinta das canetas e a madeira dos lápis causava-lhe micose, e de computadores nada entendia. Era, por assim dizer, um ser sensível, mas muito homem do seu tempo. Diria mesmo que do seu tempo futuro, a avaliar pela incredulidade e dificuldade que tanta gente tinha em acreditar nas suas experiências com seres de outras galáxias. Como eram ingénuos, achando que estamos sós no cosmos. Ele entendera-o logo em criança, por altura do seu primeiro avistamento. A própria mãe, tentando protegê-lo, tinha tentado dissuadi-lo da verdade, dizendo-lhe que aquele objeto brilhante que vira a sair da janela, não era uma mini nave alienígena, senão e apenas uma moldura com a qual tentara acertar na cabeça do pai. Os cálculos saíram-lhe mal, mas muito bem as pazes com o pai de Valter, logo nessa mesma noite. Informação a mais e despropositada para uma criança tão pequena ainda, mas que o miúdo lá entendeu que tanta explicação só podia esconder o propósito maior de ocultar a existência de vida extraterrena.

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Só não entendia como é que desperdiçavam todo o seu incrível e profundo conhecimento numa matéria pouco dominada, como a da vida para lá da Terra, e o tinham encafuado no economato. Seguramente, para que tivesse tempo útil e de qualidade para refletir sobre as suas teses. Bem pensado, avaliou. Aproveitaria todos os dias, o dia todo, para tentar voltar a estabelecer contacto com o ‘mundo exterior’. Do outro lado, ou seja, todos os restantes funcionários da empresa, viviam entre o assustado e o fascinado com aquela personagem a quem chamavam Neurónio Zero, e percebiam perfeitamente porque tinham inventado um departamento de economato numa empresa onde o mesmo não fazia muito sentido. Tudo era virtual além de que as encomendas do verdadeiro material que utilizavam e de que realmente precisavam passava pelo departamento de engenharia e não por Valter, que não distinguia uma entrada USB de uma banana da Madeira.

Um dia, muito por acaso, um administrativo, enxertado de nerd, de um qualquer piso superior, bem acima da cave onde vivia o armazém do ‘economato’, entrou no espaço de trabalho de Valter. No centro do raio de luz que a porta que acabava de abrir projetava para dentro do amplo, mas sombrio, armazém, a silhueta do administrativo surgia como uma esguia mancha desfocada. Sem limites concretos, sem textura, sem densidade. Apenas uma pouco substancial presença. Uma difusa figura absolutamente desproporcional. A cabeça, oblonga, era como a dos bebés que nascem por força de fórceps e era, em altura, superior à zona correspondente ao tronco. As pernas, por seu turno, eram gigantescas e finas, enquanto os membros superiores lembravam as imagens que temos de um Tiranossauro Rex. Uma semelhança que apenas não ocorreu a Valter por desconhecer, em absoluto, as existências passadas, focado que estava nos seres que estão para vir. Meio amedrontado, com tanta resma de papel – matéria com a qual estava pouco familiarizado naquele mundo de código binário em que habitava – o administrativo não se atrevia a entrar, nem ousava dar mais do que aquele primeiro passo. Tossiu, na esperança de, assim, se fazer anunciar e, quem sabe, ganhar coragem para avançar naquele labirinto de caixas, que alguém parecia ter espalhado propositadamente para dissuadir estranhos de outros departamentos. Nada disso. Não havia rasgos de inteligência ou determinações estratégicas por detrás daquele labirinto de papel empacotada que jamais alguém tencionava utilizar – nem mesmo para fazer aviões –, apenas a enorme preguiça de Valter.

Valter, por sua vez, tinha tido semelhante sensação de estranheza logo da primeira vez que saíra do armazém para ir à casa de banho. Ao regressar ao economato, perante a forma errática segundo a qual as caixas de amontoavam, e na incerteza de que caminho tomar, percebeu que tudo era remexido na sua ausência. Que seres invisíveis ou que apenas não se faziam notar, coabitavam aquele seu espaço, manobrando o stock, reorganizando a sua disposição e tentando, dessa forma, entrar em contacto consigo. De entre toda aquela multidão de gente, era consigo e apenas consigo que encetavam dialogar. Sabia que aquilo queria dizer alguma coisa. Encomendou uma escada, depois uma grua. Precisava de ver que mensagem se leria de cima quando tivesse um plano picado sobre as caixas. Não reconheceu o alfabeto, mas não se deixou abater. Passaria, também ele, a reorganizar o layout do stock sempre que pudesse e conseguisse. Já o tinha conseguido meia vez inteira. Retirara do fundo do armazém uma pequena caixa de canetas que colocara logo à entrada, ao nível do olhar, mais ou menos à altura a que ficam as bolachas boas e mais caras nos supermercados.

– Tomem, lá!

Foi o que disse Valter na altura, esperando desnortear os alienígenas. Percebeu ainda que todo aquele amontoado de caixotes que impediam a progressão no terreno dentro da enorme área que ocupava o armazém, no piso menos tudo do edifício, funcionava bem como ratoeira. Outra especialidade em que era exímio. Não sabendo por onde ir, ou tendo de solicitar coordenadas, qualquer extraterrestre seria uma presa fácil de apanhar. Tinha apenas de magicar forma de fazer cair uma rede sobre o invasor, logo que se aventurasse pelas caixas.

Nenhum deles, todavia, se tinha arriscado a tanto. Deviam andar a ler-lhe os pensamentos. Tinha de limitar ainda mais a sua atividade cerebral. Estava a funcionar. Ele próprio começava a sentir o enorme vazio no sótão da sua existência pensante. Por essa altura, Valter endeusou as suas capacidades ultra-humanas. Não havia scanner capaz de ver mais do que uma linha plana e sem atividade, caso sondassem o seu cérebro. Se aceitassem tamanha expertise no Cirque do Soleil conheceria as luzes da ribalta, era só no que pensava. Mas sabia estar destinado a algo maior, superior. Algo interdito aos comuns mortais e para isso se preparava diariamente. O momento, se bem entendia, desenhava-se agora à sua frente, na forma daquele ser etéreo, esfumado, de contornos esbatidos, difuso, acinzentado. Era chegada a sua hora. Com a maior quantidade de silêncio que conseguiu reunir – todos sabem como é complexa a tarefa de reunir silêncios – cortou um pouco de fita adesiva de dupla face. Colou um círculo em torno da cabeça e, na testa, ‘adesivou’ o telemóvel. Esqueceu-se, porém, de ligar a câmara e como queria filmar aquele que seria o seu quarto contacto ou, quem sabe, a sua segunda comunicação…

By © C.J. Burton/Corbis

– Ó da casa.

O som interrompeu o seu raciocínio. “Ó da casa?” Nem precisaria de falar inglês com o alienígena. O tipo já vinha documentado e ensinado a falar o dialeto luso. Extraordinário. Pensam em tudo, lá no Espaço sideral, ponderava com uma ponta de emoção o bravo Valter. Nisto, o som de palmas. ‘Deve ter aprendido a nossa língua enquanto via telenovelas da Globo’, ponderava Valter, sem querer fazer oscilar demasiado a sua atividade cognitiva e sem perder o fio à meada daquilo que estava a fazer. Não conseguia descolar silenciosamente o telemóvel daquela fita adesiva. Já lamentava ter comprado da melhor que encontrou. O melhor seria antes descolar toda a fita da cabeça, mantendo o telemóvel naquela posição de luz em capacete de mineiro ou espeleologista, e acionar depois a câmara de filmar. Foi o que fez. Em má hora, acrescente-se. O uivo que saiu do mais profundo lugar das suas entranhas ao puxar a fita adesiva e, com ela, parte do seu escalpe, ecoou durante vários minutos, fazendo reverberar as estruturas do velho bairro lisboeta e estremecer de pânico a população de outros bairros vizinhos, que se o mundo é uma ervilha, Lisboa é um milésimo de grau de areia, já se vê.

Ensanguentado, dorido, aterrorizado e prestes a desmaiar, Valter avançou para a figura, agora translúcida que tinha avistado à porta do armazém. Aos gritos, a figura sumia-se no éter, como que evaporando-se a olhos vistos. Uma imagem ainda mais macabra se vista através dos olhos lacrimejantes de Valter, por onde escorriam fios de sangue e de aflitiva dor. Na mão direita, erguida na esperançosa tentativa de conseguir captar o ser de outras galáxias, o telemóvel, preso a uma fita cinzenta onde se agarrava de forma grotesca, o topo do seu couro cabeludo. Destapada e em sangue, a cabeça de Valter assemelhava-se à prima tonsura de um padre diabólico, apenas no centro, em vez de cabeça rapada ostentava o crânio a descoberto. A dor era lancinante e em vão. Valter recordou-se que, a fim de manter a sua total privacidade e para que GPS algum alguma vez pudesse descortinar por onde andava, o seu telemóvel era tão básico que já nem existiam iguais e que também não dispunha de câmara de filmar, ou de fotografar, sequer. Talvez se não tivesse reduzido tanto a sua atividade cerebral, se tivesse acautelado isso a tempo, antes de colar aquela enorme tira em torno da cabeça. Paciência. O mais importante é que estava tudo registado na sua mente dorida.

A cena era macabra e foi mais do que aquilo que o já assustado administrativo conseguiu aguentar. Aquele era o encontro imediato do pior grau que já lhe fora permitido presenciar. Fugiu até à segurança do seu bunker digital, onde mergulhou em profundidade, sem nunca mais ter vindo à tona. Pela empresa circulou o vídeo das câmaras de segurança, dando conta dos rituais satânicos de Valter. Criou-se o mito empresarial de que comunicava com almas perdidas a que chamava marcianos e que depois de os enjaular, lhes comia o cérebro. Assim justificavam a imagem tétrica de Valter, com o crânio a descoberto e em sangue, um escalpe na mão, de onde saía um aparelho que ninguém foi capaz de identificar. O olhar daquele homem demoníaco ou apenas enlouquecido, apoiado à ombreira da porta dupla do armazém, ao lado da qual se podia ler Gate. Desde esse dia que o episódio e o homem que o protagonizou ganharam o nome de Valter Gate. A empresa mudou-se, entretanto, para o Texas, de onde diz que não voltará a sair. O imóvel de Lisboa ainda está à venda e Valter, entretanto uma lenda no Youtube, diz ter encontrado o epicentro da atividade extraterrena. Segundo ele, gente de outros planetas adora aquele tipo de papel e é atraída pelo plástico das canetas com os quais, ainda hoje, concebe, projeta e realiza ratoeiras para extraterrestres. Entretanto, parece que perdeu a fé na humanidade e nos vizinhos também.

E, pronto. É isto. Espero que tenha valido a pena termos avançado para a versão longa dos factos. Ah, já me esquecia, Valter usa agora invariavelmente uma t-shirt onde se pode ler:

“Não acredito em humanos!”

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