Era perseguido. Não sabia por quem, mas sentia, no mais fundo do seu íntimo, medo dessa presença, ainda que imaginária. Olhava para trás e nada. Então de quem eram aqueles passos que não os seus, que ouvia correrem atrás de si, a fazerem eco dos seus próprios passos? Parava, o outro também. Acelerava, o outro também. Nisto, uma sombra. Correu mais depressa e de forma mais aleatória, na tentativa que adivinhava vã de despistar o outro. Agora já um vulto. Uma mancha cinzento-escuro. Um fôlego sôfrego como o seu. Correu mais. Tentou até correr melhor.
Tentava ver na sua memória Usain Bolt nos seus mirabolantes 100 metros. Como colocava as mãos? E as pernas? Elevava muito ou pouco os joelhos? Olha de novo para trás. O vulto desapareceu. No seu lugar, no meio daquela ruela estreia que temia acabar num beco sem saída, viu um gato todo branco com olhos turquesa. O gato guardava uma mala de viagem. Convidava-o a ir ter com ele, ou era ele quem não resistia a ir ter com o gato e ver porque lhe tinham deixado ali aquela mala? Aproximou-se. O gato saiu de cima da mala, para que pudesse abri-la. Hesitou uns segundos. Olhou por cima do ombro. Verificou a parte escura do passeio, aquela onde alguém se podia vestir de invisibilidade. Sabia que acabaria por abrir a mala. Já tinha discutido isso consigo próprio. Reparou que o gato já lá não estava. Abriria na mesma. Destrancou o fecho e o tampo da mala, que era já um baú, ergue-se devagar. Era mais pesada do que deixava adivinhar. Estava prestes a desvendar todo aquele mistério rocambolesco. Dentro da mala… Não queria acreditar. Lá dentro estava…
Miguel sentia-se exausto. Cumpria o turno da noite há já cinco meses e percebia que estava a ficar esgotado. Sem rendimento. Sem discernimento. Vazio de criatividade. Oco de ideias. Incapaz de alinhavar um enredo básico que fosse. Trabalhava naquele sonho há já mais de vinte minutos e não conseguia sair dali. Claro que, na manhã seguinte, o sonhador não se lembraria do que tinha visto na mala. Era apenas um sonho, mas ele tinha de o completar. Era essa a sua função. Não podia deixar vazios. Sempre que há vazios, o sonhador preenche-o e é aí que tudo pode começar a correr mal. Tinha em mãos a responsabilidade total sobre 20 guiões em simultâneo. Da sua capacidade inventiva dependiam os sonhos de 20 indivíduos. Dez homens, dez mulheres. Destes, quatro crianças. A privação de sono, a que os recentes cortes de pessoal na empresa obrigavam, estava a conduzi-lo à loucura. A si e aos milhões de outros que, nas mesmas condições, se viam forçados a trabalhar quase vinte horas diárias. Contra si tinha ainda a resiliente mania da perfeição, do detalhe cénico, do rigor e da verosimilhança da história. As suas paisagens oníricas, por todos elogiadas, eram de uma riqueza extraordinária, bem distante dos simplistas padrões ‘Dalinianos’.
Os seus relógios podiam igualmente derreter e dobrar-se aos caprichos de uma cómoda, mas não se limitavam a surgir em paisagens áridas e vazias. Detinha-se nos detalhes, aqueles pequenos nadas que impediam os indivíduos de se cansarem ou se sentirem perdidos nos seus sonhos. Se tivessem de acordar, que fosse de prazer ou exaltação, jamais por medo ou fobia. As crianças e as mulheres eram as mais difíceis. Requeriam sempre os guiões mais exigentes. Quer umas quer outras detêm-se nos pormenores, nos quês e nos porquês. Não lhes basta um esboço, querem feições, cores, ideias novas e estimulantes e querem ainda conseguir entendê-las. Os homens preferem simultaneidade, velocidade. Vinhetas breves de temas vários. Gostam de andamento. A eles dedicava os seus mais inspiradores cartoons, que apresentava em forma de BD e que eram dos mais requisitados do mundo, segundo um recente estudo da Oníris, empresa de fabricação de sonhos para a qual trabalhava, há já sete anos. As mulheres sempre lhe tinham dado bastante mais trabalho. Elas apreciam a densidade dos romances, a metalinguagem da poesia, a repetição de algumas personagens, a visualização de emoções e sentimentos, cenografias complexas por onde possam deambular em busca de si mesmas. Gostam de liberdade e paixão. Eles, um pouco como as crianças, apreciam policiais, algumas brigas de onde possam sair heróis e, sem grande choque, de mulheres torneadas. Nesse aspeto, para não falhar ou desiludir e garantir resultados satisfatórios, inspirava-se sempre na Ava Gardner. Apenas como ponto de partida, servia-se da sua própria musa sexual, mas claro que lhe retirava peito numa ficção, alourava-lhe o cabelo noutra…
O final era sempre bem diverso, mas, já se sabe, quando a matéria-prima é de primeiríssima qualidade, o resto surge sem grande esforço, mesmo nas mãos de um ‘escultor’ menor, o que nem sequer era o caso. Com as crianças tinha de ter cautelas acrescidas. Qualquer ingrediente na calibragem errada, na medida incorreta e o sonho passava a pesadelo. Após o primeiro sonho de terror, os cuidados redobram-se, pois todos os pesadelos deixam uma porta escancarada, ou apenas uma fresta que seja, por onde qualquer elemento pode entrar e passar a ensombrar a mais divertida ou interessante aventura. Certos elementos ganham vida própria, adensam-se e agigantam-se, na medida em que dependem já não do criador, mas do sonhador. Era um trabalho muito exigente e tramado. Com o volume de guiões que tinha em mãos e o excesso de horas consecutivas de trabalho, Miguel sabia que não aguentaria o nível por muitas mais noites. Queixou-se ao sindicato, depois à administração, mas nada acontecia. “São os cortes, são os cortes”, repetiam-lhe com semblantes fechados e olhos muito abertos. “Temos de compreender a conjuntura e dar o nosso melhor. Pior estão os colegas que ficaram, sem trabalho”, ameaçavam de forma velada. Não, pensava Miguel, pior é morrer no estirador a meio de um guião de sonho para uma criança, ou de fome. Se não valorizam o trabalho dos fabricantes de sonhos, em breve toda a humanidade estará a sofrer. Sofrerá de cansaço devido a sonhos mal elaborados, de pânico, devido a guiões mal estruturados, ou mesmo de privação de sono, por receio de voltar a ter sonhos negativos e depressivos. Será o terror na sua forma mais pura, aquela que nasce dentro de cada um. Nos últimos dias dava por si a recorrer a fórmulas baratas, clichés oníricos: sonhos eróticos para homens e mulheres e cenários de jogos digitais para a criançada.
De tão exausto, no final, ao acordarem, todos os seus ‘sonhadores’ se recordavam daquilo com que os tinha entretido a noite toda, ou seja, não tinha feito o trabalho como deve ser. Esse deve manter-se discretamente naquele mundo que não deve ser chamado à realidade. São realidades paralelas que não deviam coexistir, muito embora façam parte de um mesmo mundo. Não podia continuar a fazer isso, nem conseguia manter o ritmo. Não tinha forças. Tinha de parar. Um mês, pediu. Um dia, foi o que lhe deram. Um dia seria igual a nada, mas precisava tanto de dormir! Protestou, barafustou, mas aceitou. Se o mandassem embora, não encontraria emprego noutra área e no setor dos sonhos, todas as empresas estavam nas mesmas condições. Não havia vagas. Ninguém entrava. Apenas saíam. Gostaria de mudar de ramo, criar brinquedos era um sonho, mas, sabia-o, faltava-lhe habilidade manual, tecnicidade para tornar reais os brinquedos que criava na sua cabeça.
Certo dia, começou a circular na empresa, de forma clandestina, por entre o afã de guionistas e criativos, uma circular que convocava para uma reunião todos os trabalhadores, ou melhor, todos os fabricantes de sonhos, já que os administrativos não sofriam dos mesmos constrangimentos laborais. Percebeu-se que, devido à divisão por turnos, os quais eram cada vez mais longos, teriam de ser agendados dois ou mais encontros, com todos os sindicatos presentes, a fim de chegar a todos os fazedores de sonhos do planeta. Não havia um espaço físico suficientemente grande para o efeito, pelo que, à semelhança de outros encontros anteriores, seria elaborada uma mega videoconferência, cabendo a cada um estar online, através de qualquer tipo de dispositivo informático. Por norma, a rua era o fórum. Tomando conhecimento desta iniciativa à escala planetária, os lobbies empresariais colocaram-se no terreno, infiltraram espiões, teceram ameaças, despediram a eito e, enquanto as ações das suas empresas caíam a pique e a população inteira se colocava contra estas medidas, cientes de que, sem sonhos, adoeceriam, os fabricantes de sonhos, revoltados, mudaram de estratégia.
Decretaram de imediato que os turnos seriam interrompidos para que a conferência fosse em simultâneo, de modo a não atrasar as deliberações necessárias. Caso tivessem de fazer mais do que um encontro, as decisões e encontro de posições poderia arrastar-se durante semanas e alguns dos criativos já se debatiam com sérios problemas de saúde. Contrariando todas as expectativas, a decisão foi rápida e unânime e não menos assustadora: Greve Geral durante 48 horas, para garantir uma noite em qualquer quadrante do planeta sem sonhos. O caso era sério. Nunca antes tal tinha acontecido. Em protestos anteriores garantiram-se sempre os serviços mínimos. O mundo sonhava pouco e mal, mas sonhava ainda. Agora não. Todos temiam os riscos. Era uma medida inédita e não se conheciam ao certo as reais implicações da falta de sonhos. Muitos indivíduos tinham morrido após noites sem dormir, mas a associação era sempre feita em relação à privação de sono e não de sonhos. O patronato não cedeu. Bateu o pé na necessidade de aumentar lucros à conta de menos custos de manutenção das empresas, evocou os mercados e outras abstrações, meros sinónimos da sua ganância, e até ao fim acreditou que cabia aos bons homens dos sonhos retroceder como sempre fizeram até aí. Não avaliaram bem os níveis de cansaço dos criativos, nem deram ouvidos aos milhões de reclamações que recebiam, desde há alguns meses, de clientes insatisfeitos com os seus sonhos. Se os sonhos são agora de pior qualidade? Claro que são, mas essa era parte da sua estratégia para poderem, em breve, implementar pacotes de sonhos mais caros, com os melhores guionistas a trabalharem nos seus enredos oníricos. Todos teriam acesso a um ‘kit básico’, por assim dizer, uma espécie de grau zero dos sonhos. Uma coisinha simpática, mas com pouca lógica ou carisma. Apenas para não se passar a noite em branco. A partir daí, não havia limites. Poderiam até criar pacotes com temas específicos para os mais exigentes, pacotes empresariais através dos quais se poderia facilmente formatar empregados… Era todo um universo de possibilidades, que lhes permitiria enriquecerem de novo. Assim, entre o deve e o haver de toda a situação, as empresas esfregavam as mãos de satisfação, cientes de que as suas vidas financeiras alcançariam o Evereste das bolsas mundiais, no dia seguinte ao da greve.
A greve manteve-se. Ninguém cedeu. O mundo prostrou-se numa espécie de suspense, economizando a própria respiração e aguardou. Ao cabo de 24 horas, a humanidade estava débil e registou-se um número incomensurável de enfermidades, umas conhecidas, outras nem tanto. Aguardou-se ainda. Quando findou a noite do último país a ter noite durante aquelas 48 horas, o mundo não acordou. Ninguém teve coragem de dizer em voz alta aquilo que muitos suspeitavam: os homens não vivem sem sonhos. Restavam agora os guionistas, alguns enfermos, a quem a febre tinha colmatado a ausência de sonhos, os loucos e os toxicómanos, fabricantes dos seus próprios delírios. E agora? Quem iria fabricar novos homens?
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